Matiné de Metal em Lisboa, uma forma diferente de passar o serão de domingo à tarde. Traz recordações dos anos 80 e 90, quando as matinés eram bastante frequentes, décadas de ouro para o Death Metal e para o Hardcore, pelo que estariam reunidas as condições perfeitas, pois o cartaz apelava a isso mesmo – celebração dos anos 80 e 90 através da música.
Antes das 16 horas já os adeptos da música pesada se agrupavam junto da Rua João Saraiva. Assim que as portas abriram pelas 16:20 horas, sensivelmente, alguns mais fiéis à festança, entraram imediatamente, outros preferiram esperar pela altura certa.


O terceiro tema foi “Seguir Caminho” e arrancou com um baixo carregado de treble novamente, e a música foi uma mistura perfeita entre Hard Rock e Hardcore, é a sonoridade da primeira e atitude na voz e presença em palco da segunda. Momento sublime onde os 3 artistas de cordas colocaram-se lado a lado ostentando singelamente à plateia um companheirismo incrível e uma invejável sinergia. Novamente o ping-pong das vozes de Nuno e Pedro, que assentou que nem uma luva e terminaram com um final altamente atmosférico que nos convidava ao headbang, e a sala aceitou o convite. Avançaram para “Authoraty” num começo que nos conduziu para algo do Doom Metal, só que a bateria do Paulo não nos deixava adormecer e os riffs das guitarras transfiguraram-se em algo do Thrash Metal, e o Pedro atacava violentamente a corda Mi do seu baixo. Neste tema foi visível a maravilhosa técnica de Filipe no solo onde o tapping era conspícuo e apresentava ainda um sweeping delicioso. A bateria era incansável e conduzia os restantes membros de forma exemplar. Agradeceram ao público e mostraram a sua boa disposição enquanto se preparavam para “Desespero”. Neste tema ouviu-se uma intro melancólica e lenta a roçar o Hard Rock que de repente mudou como se de um segundo andamento se tratasse, ficou mais pesada e agressiva – arrisco a dizer que é talvez a música mais bem composta pela banda. A felicidade dos artistas em palco é inegável, basta olhar para a cara do Nuno, que sorria abertamente enquanto enviava as suas vibes pela palheta nas cordas da sua guitarra. A assistência reagiu alegremente com muitas palmas. Paulo avisou que se aproximava a fase final, e assim aconteceu com “Straight to the Point” com uma bateria fenomenal, talvez o tema onde o instrumento de percussão teria maior destaque; “Conspiracy” com uma aura de Punk Rock e Thrash Metal; e por fim “Mundo Digital” onde a banda deu tudo aos espectadores do RCA, muita agressão instrumental, muita atitude em palco; muita energia a transbordar – PURO HARDCORE. Após 40 minutos de atuação agradeceram e apresentaram-se. Surpreenderam todos na sala, pois grande parte dos presentes veio à procura de Death Metal, e desconfiou de uma banda de Hardcore, mas como diz o velho ditado ‘não julges um livro pela capa’, e os Grau Zero são uma banda que deslumbra. A atitude é Hardcore do mais puro, e a sua sonoridade bebe inspiração no Rock, Punk e em várias estações do Metal.

Um pouco depois das 18 horas foi a vez dos Derrame subirem ao palco e este quinteto do Death Metal começou com “Necro-Messiah”. tema do EP de 2014 ‘Crawl to Die”, que foi novamente editado no álbum de 2023 ‘Unveiling Pain’, e se havia dúvidas ficaram totalmente respondidas nos primeiros segundos da atuação. Muita agressão, tanto instrumental como vocalmente, tal como se quer no Death Metal. Só que esta banda demarca-se das bandas contemporâneas do género, e invoca bandas do início dos anos 90, num misto de movimento da Flórida e de Nova Iorque. Os metaleiros em Lisboa não querem saber de onde vem o Metal, se é Metal é para se congregarem num mosh coletivo, e assim se cumpriu a profecia e abriu a época do mosh pit no RCA. A surpresa da sonoridade recaiu sobre o baixista Frederico Ramos (Fred como é mais conhecido), que usa uma técnica de Slap formidável, que primeiro estranha-se, todavia depois anseia-se, resolvendo assim o mistério do porquê de no álbum sentirmos um baixo com tanta alma e groove. É ainda manifesto a técnica vocal esplêndida do Marco Nogueira, que se curvava para a frente de forma conseguir extrair do seu diafragma um canto gutural do mais grave possível. Sem paragem colaram o segundo tema “Corroded” e a tónica intensificou-se com uns blast beats infernais, das baquetas do Pedro Pereira, que desafiavam os que se aventuravam pelo circle pit, tremolos nas guitarras gémeas, do Luís Sousa (mais conhecido por Nigel) e do Nélson Dias que hipnotizaram quem do circle pit decidiu afastar-se, a energia fluía em ciclo do palco para plateia e vice-versa, e de modo pavloviano começou o crowd surfing. O frontman dirigiu-se ao público ‘Boa tarde, nós somos os Derrame e vamos tentar agitar as coisas’, e verdade seja dita agitadas já as coisas estavam depois desta entrada estonteante. “Bloodcurse” seguiu-se e o circle pit reacendeu-se imediatamente. Agradeceram e avançaram para “Pro Dolor” com muito peso nos riffs e muita agressividade no som, e a bateria liderava de forma eximia que foi preenchendo o background musical com os seus pratos e pedais duplos. As guitarras foram executadas na perfeição e quando parece que estamos prestes a cair num sonho fomos puxados de novo pelo vozeirão do Marco.

“War Inception” foi a oportunidade ideal para ouvir/ver a genialidade do Fred ao aplicar Slaps e Pops numa música de Old School Death Metal, é que assentava na perfeição e deu-lhe aquele toque mais ‘groovish’ e pesado em simultâneo. A fórmula foi já foi inventada, só que é tocada e melhorada nas mãos/voz dos Derrame, este som é Death Metal diretamente de Tampa. Ocorreram alguns problemas técnicos no final deste tema, que foram resolvidos em menos de 2 minutos, e o entusiasmo foi tanto, e a vontade foi manifesta que a banda arrancou logo para “Requiem”. Num riff, pelas palhetas de Luís e Nélson, que recrutava influências talvez a Cannibal Corpse. Era bastante rítmico e puxava para dança, e dança no metal é sinónimo de mosh pit. Apresentou, porém, uma transformação quase no final desacelerando por um lado, e por outro densificou-se incrementando o seu peso, suplicando dessa forma por um headbang coletivo, quase em uníssono na sala da Rua João Saraiva nº 18. Avançaram para “Chaos in Earth” com um riff altamente atmosférico e fantasmagórico da parte do Luís e do Nélson, que foi imediatamente martelado pela voz de Marco e revitalizado pelas linhas de baixo do Fred e fustigado pelos pedais duplos e blast beats do Pedro. Os moshes eram incessantes, o público puxava pela banda, e os Derrame mostravam ainda mais vitalidade e felicidade em palco, a energia fluía; a audiência interagia com a banda, subindo para o palco, por breves momentos, e depois encontravam formas inovadores de fazer crowd surfing atirando-se às ondas da multidão metaleira.

Para enganar a malta, a banda tocou durante uns breves segundos um riff de Slayer, para depois voltar ao EP de 2014 com “Holocausto Atómico” e aqui já nada importava, a alegria ultrapassou os limites que o corpo humano tolera, e o vocalista rendeu-se ao crowd surfing e assim que encontrou terra firme no palco mostrou uma técnica de gutural invejável. Uma malha rápida e muito pesada que no final voltou a densificar-se e desacelerar, o que levou a que a assistência completamente fiel ao ritmo se convertesse à nova religião que a música assim pede: HEADBANG. Era para ser o último tema, como constava no setlist, mas por ainda haver tempo e acima de tudo muita vontade de tocar, ainda presentearam os metaleiros de Alvalade com “Crawl to Die” do EP de 2014. E este tema parece que foi escolhido a dedo para fechar a atuação, pois encapsulava tudo o que é o Old School Death Metal, é quase como um guia para o fazer na perfeição, e a banda que escreveu este guia aplicou-o e elevou-o a patamares colossais: tremolos, blast beats, velocidade, peso e muito gutural. O Marco, emocionado, terminou com “Obrigado malta, obrigado a todos, obrigado RCA, foi do C#$%&?*!”. A emoção foi tanta que no final ainda houve uma tentativa de se cantar os parabéns, pois há no RCA quem tenha escolhido a música pesada como forma de celebrar essa importante data. Estes foram 40 minutos que voaram de forma rápida, porém muito bem aproveitada. A banda demostrou uma energia formidável e uma boa disposição invejável, apresentou-se com excelentes músicos tecnicamente e musicalmente. Um grupo a acompanhar por todos os fãs do Death Metal, em particular para aqueles que se derretem pela onda mais Old School americana, em particular a cena de Tampa e o movimento de Nova Iorque.

Cinco minutos depois das 19 horas e chegaram os Ruttenskalle. A caveira no suporte do microfone do vocalista António Gonçalves sinalizava a entrada na espiral de mais Death Metal. Esta banda tem a particularidade de ser um completo tributo ao Old School Death Metal de Estocolmo, e se havia incertezas, essas foram completamente extintas com o primeiro tema “Flesh”, música nova, porém tem sido a forma como a banda tem aberto os seus últimos concertos. Uma intro bastante sombria e atmosférica, com fumo de forma ilustrar aquilo que melodia queria transmitir, e depois entraram as guitarras Jackson de Jorge Matos e Tiago Rocha com escalas e acordes menores que se coadunaram perfeitamente com o sentimento macabro instalado. Ouviu-se um “Como é que RCA” vindo do António, seguido de um “UAHHH!” a la Death Metal. Os riffs encorparam-se e remeteram-nos logo para os 90s para bandas como Dismember, pois o riff em tremolo vinha recheado de distorção e seria recebido pelos tímpanos dos metaleiros presentes, como um verdadeiro serrote de Estocolmo. E claro os blast beats do kit do Paulo Soares, que quase nos partiam a cervical ao tentarmos abanar a cabeça ao ritmo frenético com que eram tocados.
O segundo tema da banda foi “Time to Kill”, e a partir daí a restante atuação concentrou-se no álbum de 2021 ‘Skin’em Alive’. Com uma intro deveras atmosférica que era enfeitada pelo estrondoso riff ‘estocolmiano’ e os blast beats ribombantes, amplificando a atmosfera musical, levou a que muitos dos presentes fizessem uma de duas coisas: uns dedicaram-se ao headbanging enquanto deixavam a melodia fluir pelo corpo e gravavam no seu córtex e hipocampo as memórias do momento, e desfrutavam-no no local; outros puxavam do telemóvel e imortalizavam a canção num vídeo, que depois proliferaria pelas redes sociais, partilhando com o mundo essa vivência. No final interagiram com a sala mostrando a sua já conhecida boa disposição, aproveitando para agradecer às bandas anteriores. Em “Rotten God” o serrote nórdico do Jorge voltou acompanhado pela harmonia criada pelos acordes do Tiago. A distorção foi tanta que só foi ultrapassada pelo peso musical do riff, que por sua vez foi ornamentado pela bateria incansável do Paulo, e claro pelo vozeirão do António. Algumas mudanças de ritmo que nos convidaram a abanar a cabeça e a energia voltaria a brotar do palco, ao ponto de o filho do vocalista (uma criança com cerca de 5 anos) iniciasse ele mesmo o circle pit – é evidente que o metal corre nas veias desta família. Os metaleiros seguiram a deixa e ajudaram-no, com o cuidado extra, a manter a tocha do circle pit acesa, e acabaram por ajudá-lo a surfar a multidão do RCA, um momento digno de recordação.

O quarto tema foi “Anal Ride” com uma introdução horripilante que nos fez tremer que era martelada pelas baquetas do Paulo, como se estivesse a temperar uma lâmina. O Jorge usou a sua técnica grandiosa para nos entregar um solo ultramelódico e virtuoso, que foi sustido harmoniosamente pelos acordes do Tiago. Foram interagindo sempre que terminavam um tema, mostrando que queriam o público com eles, e estavam a conseguir, pois estes metaleiros foram fiéis à banda. Avançaram para “Feast of the Dying Sluts” com um riff altamente dinâmico, e com destaque para a bateria neste tema que se foi adaptando na perfeição ao que a música necessitava. Neste tema os guitarristas dispuseram-se frente a frente enquanto atacavam fortemente as cordas dos seus instrumentos de 6 cordas, revelando desse jeito o espírito de companheirismo e sinergia que existe no conjunto. Passaram para “Dead Man” e neste tema foi possível escutar o serrote do riff, que nos serrou amigavelmente os ouvidos e os nossos corpos vibratam de comoção. E não foi só a plateia que se preencheu de emoção, bastou olhar para cara de êxtase do Paulo, enquanto batia nos pratos e tambor do seu kit. O Jorge brindou-nos com um solo repleto de hammer-ons, mostrando o rol de técnicas.

“Buried” foi a seguinte onde existia uma mistura sonora de algo: altamente melódico, no entanto pesado; ultra assustador, contudo, frenético. António entregou-se ao headbang e os presentes seguiram-no cegamente. O último tema da matiné foi “Fucked with my Knife”, com um ritmo nos bpm que o Death Metal pede e com uma voz no ponto (talvez o tema onde foi possível atestar em melhores condições a capacidade técnica do António). Jorge e Tiago pegaram no serrote e não o largaram durante todo o tema, e tivemos mais um solo brilhante. A bateria do Paulo foi uma maravilha rítmica que nos navegou abertamente por águas musicais nunca antes navegadas. A última imagem que ficou foram os guitarristas frente a frente, enquanto o Paulo fustigou o seu kit de forma exemplar, e o António juntou-se ao headbang já presente na sala. Durante 40 minutos todos viajaram no tempo através da música.
Quarteto do Old School Death Metal, puxando indubitavelmente para a cena sueca do estilo, ou não fosse o nome da banda ser sueco: tremolos que parecem um serrote que tanta distorção que os riffs carregam; blast beats provenientes das profundezas do inferno; uma voz rasgada e gutural em que as letras das canções vão para temas já experimentados por bandas como Entombed ou Dismember. E diga-se que, apesar de não existir baixo neste grupo, não é por isso que as músicas não são pesadas, até pelo contrário: o peso é máximo! Interagem bastante com a assistência e a sua qualidade técnica distinta só é superada pela sua tremenda boa disposição. Têm uma vontade insaciável de entreter o público pela arte da música, algo que conseguem fazê-lo sem grande esforço do início ao fim.
Uma prova de que, apesar do nome, o Death Metal está bem vivo. Uma prova atestada que as matinés mobilizam as pessoas e são bem-vindas. Uma forma diferente de passar um Domingo à tarde, bastante ansiada por muitos, e que tantos outros desejam que se repita. Foram quase 3 horas de música pesada; foram quase 3 horas de puro divertimento. Ainda assim, para todos os que se deslocaram ao RCA foi uma viagem demasiado rápida.
Texto por Marco Santos Candeias
Fotografia por Tânia Fidalgo
Agradecimentos: Xapada Fest