Matiné de Metal em Lisboa, uma forma diferente de passar o serão de domingo à tarde. Traz recordações dos anos 80 e 90, quando as matinés eram bastante frequentes, décadas de ouro para o Death Metal e para o Hardcore, pelo que estariam reunidas as condições perfeitas, pois o cartaz apelava a isso mesmo – celebração dos anos 80 e 90 através da música.
Antes das 16 horas já os adeptos da música pesada se agrupavam junto da Rua João Saraiva. Assim que as portas abriram pelas 16:20 horas, sensivelmente, alguns mais fiéis à festança, entraram imediatamente, outros preferiram esperar pela altura certa.
Dois minutos depois das 17 horas e começou a matiné de música pesada. Os Grau Zero abriram as hostilidades com o seu Hardcore de Vialonga. Lançaram-se com o primeiro tema do seu EP de 2021 ‘Conspiracy’, o “Respect”, e com esta malha ganharam imediatamente todo o respeito da sala. Com uma introdução bastante atmosférica de forma a criar algum suspense, e tensão para depois brindarem a sala do Bairro de Alvalade de forma vigorosa com ‘Boa tarde RCA, sejam bem-vindos a mais uma tarde de destruição!’ pela voz do baixista Pedro Santos, que trazia consigo um baixo com um tom super metálico, que fazia lembrar cordas novinhas em folha, era um som com muito treble, que enfeitiçou a sala. Com uns fortes “RESPECT, RESPECT” com toda a energia que se quer num refrão Hardcore, pela voz do baixista, sendo a restante porção da voz feita por um dos guitarristas o Nuno Ardisson, enquanto o outro guitarrista Filipe Cavalcanti nos entregou um solo retirado de um Thrash/Crossover dos anos 80, sempre conduzidos pela bateria fiel de Paulo Wolf. Segundo tema do EP e segundo nesta tarde “Nunca te Fique”, e aqui há uma inversão nas vozes, foi o Nuno que atuava nos back vocals e o Pedro que assumiu a postura de frontman, trocando até de posições em palco, e o canto foi saltitando entre as duas vozes como num verdadeiro ping-pong, carregado de emoção e aura de puro Hardcore, tendo como cereja no final um solo melódico e rápido vindo diretamente da ‘Thrashlândia’.
O terceiro tema foi “Seguir Caminho” e arrancou com um baixo carregado de treble novamente, e a música foi uma mistura perfeita entre Hard Rock e Hardcore, é a sonoridade da primeira e atitude na voz e presença em palco da segunda. Momento sublime onde os 3 artistas de cordas colocaram-se lado a lado ostentando singelamente à plateia um companheirismo incrível e uma invejável sinergia. Novamente o ping-pong das vozes de Nuno e Pedro, que assentou que nem uma luva e terminaram com um final altamente atmosférico que nos convidava ao headbang, e a sala aceitou o convite. Avançaram para “Authoraty” num começo que nos conduziu para algo do Doom Metal, só que a bateria do Paulo não nos deixava adormecer e os riffs das guitarras transfiguraram-se em algo do Thrash Metal, e o Pedro atacava violentamente a corda Mi do seu baixo. Neste tema foi visível a maravilhosa técnica de Filipe no solo onde o tapping era conspícuo e apresentava ainda um sweeping delicioso. A bateria era incansável e conduzia os restantes membros de forma exemplar. Agradeceram ao público e mostraram a sua boa disposição enquanto se preparavam para “Desespero”. Neste tema ouviu-se uma intro melancólica e lenta a roçar o Hard Rock que de repente mudou como se de um segundo andamento se tratasse, ficou mais pesada e agressiva – arrisco a dizer que é talvez a música mais bem composta pela banda. A felicidade dos artistas em palco é inegável, basta olhar para a cara do Nuno, que sorria abertamente enquanto enviava as suas vibes pela palheta nas cordas da sua guitarra. A assistência reagiu alegremente com muitas palmas. Paulo avisou que se aproximava a fase final, e assim aconteceu com “Straight to the Point” com uma bateria fenomenal, talvez o tema onde o instrumento de percussão teria maior destaque; “Conspiracy” com uma aura de Punk Rock e Thrash Metal; e por fim “Mundo Digital” onde a banda deu tudo aos espectadores do RCA, muita agressão instrumental, muita atitude em palco; muita energia a transbordar – PURO HARDCORE. Após 40 minutos de atuação agradeceram e apresentaram-se. Surpreenderam todos na sala, pois grande parte dos presentes veio à procura de Death Metal, e desconfiou de uma banda de Hardcore, mas como diz o velho ditado ‘não julges um livro pela capa’, e os Grau Zero são uma banda que deslumbra. A atitude é Hardcore do mais puro, e a sua sonoridade bebe inspiração no Rock, Punk e em várias estações do Metal.
Um pouco depois das 18 horas foi a vez dos Derrame subirem ao palco e este quinteto do Death Metal começou com “Necro-Messiah”. tema do EP de 2014 ‘Crawl to Die”, que foi novamente editado no álbum de 2023 ‘Unveiling Pain’, e se havia dúvidas ficaram totalmente respondidas nos primeiros segundos da atuação. Muita agressão, tanto instrumental como vocalmente, tal como se quer no Death Metal. Só que esta banda demarca-se das bandas contemporâneas do género, e invoca bandas do início dos anos 90, num misto de movimento da Flórida e de Nova Iorque. Os metaleiros em Lisboa não querem saber de onde vem o Metal, se é Metal é para se congregarem num mosh coletivo, e assim se cumpriu a profecia e abriu a época do mosh pit no RCA. A surpresa da sonoridade recaiu sobre o baixista Frederico Ramos (Fred como é mais conhecido), que usa uma técnica de Slap formidável, que primeiro estranha-se, todavia depois anseia-se, resolvendo assim o mistério do porquê de no álbum sentirmos um baixo com tanta alma e groove. É ainda manifesto a técnica vocal esplêndida do Marco Nogueira, que se curvava para a frente de forma conseguir extrair do seu diafragma um canto gutural do mais grave possível. Sem paragem colaram o segundo tema “Corroded” e a tónica intensificou-se com uns blast beats infernais, das baquetas do Pedro Pereira, que desafiavam os que se aventuravam pelo circle pit, tremolos nas guitarras gémeas, do Luís Sousa (mais conhecido por Nigel) e do Nélson Dias que hipnotizaram quem do circle pit decidiu afastar-se, a energia fluía em ciclo do palco para plateia e vice-versa, e de modo pavloviano começou o crowd surfing. O frontman dirigiu-se ao público ‘Boa tarde, nós somos os Derrame e vamos tentar agitar as coisas’, e verdade seja dita agitadas já as coisas estavam depois desta entrada estonteante. “Bloodcurse” seguiu-se e o circle pit reacendeu-se imediatamente. Agradeceram e avançaram para “Pro Dolor” com muito peso nos riffs e muita agressividade no som, e a bateria liderava de forma eximia que foi preenchendo o background musical com os seus pratos e pedais duplos. As guitarras foram executadas na perfeição e quando parece que estamos prestes a cair num sonho fomos puxados de novo pelo vozeirão do Marco.
“War Inception” foi a oportunidade ideal para ouvir/ver a genialidade do Fred ao aplicar Slaps e Pops numa música de Old School Death Metal, é que assentava na perfeição e deu-lhe aquele toque mais ‘groovish’ e pesado em simultâneo. A fórmula foi já foi inventada, só que é tocada e melhorada nas mãos/voz dos Derrame, este som é Death Metal diretamente de Tampa. Ocorreram alguns problemas técnicos no final deste tema, que foram resolvidos em menos de 2 minutos, e o entusiasmo foi tanto, e a vontade foi manifesta que a banda arrancou logo para “Requiem”. Num riff, pelas palhetas de Luís e Nélson, que recrutava influências talvez a Cannibal Corpse. Era bastante rítmico e puxava para dança, e dança no metal é sinónimo de mosh pit. Apresentou, porém, uma transformação quase no final desacelerando por um lado, e por outro densificou-se incrementando o seu peso, suplicando dessa forma por um headbang coletivo, quase em uníssono na sala da Rua João Saraiva nº 18. Avançaram para “Chaos in Earth” com um riff altamente atmosférico e fantasmagórico da parte do Luís e do Nélson, que foi imediatamente martelado pela voz de Marco e revitalizado pelas linhas de baixo do Fred e fustigado pelos pedais duplos e blast beats do Pedro. Os moshes eram incessantes, o público puxava pela banda, e os Derrame mostravam ainda mais vitalidade e felicidade em palco, a energia fluía; a audiência interagia com a banda, subindo para o palco, por breves momentos, e depois encontravam formas inovadores de fazer crowd surfing atirando-se às ondas da multidão metaleira.
Para enganar a malta, a banda tocou durante uns breves segundos um riff de Slayer, para depois voltar ao EP de 2014 com “Holocausto Atómico” e aqui já nada importava, a alegria ultrapassou os limites que o corpo humano tolera, e o vocalista rendeu-se ao crowd surfing e assim que encontrou terra firme no palco mostrou uma técnica de gutural invejável. Uma malha rápida e muito pesada que no final voltou a densificar-se e desacelerar, o que levou a que a assistência completamente fiel ao ritmo se convertesse à nova religião que a música assim pede: HEADBANG. Era para ser o último tema, como constava no setlist, mas por ainda haver tempo e acima de tudo muita vontade de tocar, ainda presentearam os metaleiros de Alvalade com “Crawl to Die” do EP de 2014. E este tema parece que foi escolhido a dedo para fechar a atuação, pois encapsulava tudo o que é o Old School Death Metal, é quase como um guia para o fazer na perfeição, e a banda que escreveu este guia aplicou-o e elevou-o a patamares colossais: tremolos, blast beats, velocidade, peso e muito gutural. O Marco, emocionado, terminou com “Obrigado malta, obrigado a todos, obrigado RCA, foi do C#$%&?*!”. A emoção foi tanta que no final ainda houve uma tentativa de se cantar os parabéns, pois há no RCA quem tenha escolhido a música pesada como forma de celebrar essa importante data. Estes foram 40 minutos que voaram de forma rápida, porém muito bem aproveitada. A banda demostrou uma energia formidável e uma boa disposição invejável, apresentou-se com excelentes músicos tecnicamente e musicalmente. Um grupo a acompanhar por todos os fãs do Death Metal, em particular para aqueles que se derretem pela onda mais Old School americana, em particular a cena de Tampa e o movimento de Nova Iorque.
Cinco minutos depois das 19 horas e chegaram os Ruttenskalle. A caveira no suporte do microfone do vocalista António Gonçalves sinalizava a entrada na espiral de mais Death Metal. Esta banda tem a particularidade de ser um completo tributo ao Old School Death Metal de Estocolmo, e se havia incertezas, essas foram completamente extintas com o primeiro tema “Flesh”, música nova, porém tem sido a forma como a banda tem aberto os seus últimos concertos. Uma intro bastante sombria e atmosférica, com fumo de forma ilustrar aquilo que melodia queria transmitir, e depois entraram as guitarras Jackson de Jorge Matos e Tiago Rocha com escalas e acordes menores que se coadunaram perfeitamente com o sentimento macabro instalado. Ouviu-se um “Como é que RCA” vindo do António, seguido de um “UAHHH!” a la Death Metal. Os riffs encorparam-se e remeteram-nos logo para os 90s para bandas como Dismember, pois o riff em tremolo vinha recheado de distorção e seria recebido pelos tímpanos dos metaleiros presentes, como um verdadeiro serrote de Estocolmo. E claro os blast beats do kit do Paulo Soares, que quase nos partiam a cervical ao tentarmos abanar a cabeça ao ritmo frenético com que eram tocados.
O segundo tema da banda foi “Time to Kill”, e a partir daí a restante atuação concentrou-se no álbum de 2021 ‘Skin’em Alive’. Com uma intro deveras atmosférica que era enfeitada pelo estrondoso riff ‘estocolmiano’ e os blast beats ribombantes, amplificando a atmosfera musical, levou a que muitos dos presentes fizessem uma de duas coisas: uns dedicaram-se ao headbanging enquanto deixavam a melodia fluir pelo corpo e gravavam no seu córtex e hipocampo as memórias do momento, e desfrutavam-no no local; outros puxavam do telemóvel e imortalizavam a canção num vídeo, que depois proliferaria pelas redes sociais, partilhando com o mundo essa vivência. No final interagiram com a sala mostrando a sua já conhecida boa disposição, aproveitando para agradecer às bandas anteriores. Em “Rotten God” o serrote nórdico do Jorge voltou acompanhado pela harmonia criada pelos acordes do Tiago. A distorção foi tanta que só foi ultrapassada pelo peso musical do riff, que por sua vez foi ornamentado pela bateria incansável do Paulo, e claro pelo vozeirão do António. Algumas mudanças de ritmo que nos convidaram a abanar a cabeça e a energia voltaria a brotar do palco, ao ponto de o filho do vocalista (uma criança com cerca de 5 anos) iniciasse ele mesmo o circle pit – é evidente que o metal corre nas veias desta família. Os metaleiros seguiram a deixa e ajudaram-no, com o cuidado extra, a manter a tocha do circle pit acesa, e acabaram por ajudá-lo a surfar a multidão do RCA, um momento digno de recordação.
O quarto tema foi “Anal Ride” com uma introdução horripilante que nos fez tremer que era martelada pelas baquetas do Paulo, como se estivesse a temperar uma lâmina. O Jorge usou a sua técnica grandiosa para nos entregar um solo ultramelódico e virtuoso, que foi sustido harmoniosamente pelos acordes do Tiago. Foram interagindo sempre que terminavam um tema, mostrando que queriam o público com eles, e estavam a conseguir, pois estes metaleiros foram fiéis à banda. Avançaram para “Feast of the Dying Sluts” com um riff altamente dinâmico, e com destaque para a bateria neste tema que se foi adaptando na perfeição ao que a música necessitava. Neste tema os guitarristas dispuseram-se frente a frente enquanto atacavam fortemente as cordas dos seus instrumentos de 6 cordas, revelando desse jeito o espírito de companheirismo e sinergia que existe no conjunto. Passaram para “Dead Man” e neste tema foi possível escutar o serrote do riff, que nos serrou amigavelmente os ouvidos e os nossos corpos vibratam de comoção. E não foi só a plateia que se preencheu de emoção, bastou olhar para cara de êxtase do Paulo, enquanto batia nos pratos e tambor do seu kit. O Jorge brindou-nos com um solo repleto de hammer-ons, mostrando o rol de técnicas.
“Buried” foi a seguinte onde existia uma mistura sonora de algo: altamente melódico, no entanto pesado; ultra assustador, contudo, frenético. António entregou-se ao headbang e os presentes seguiram-no cegamente. O último tema da matiné foi “Fucked with my Knife”, com um ritmo nos bpm que o Death Metal pede e com uma voz no ponto (talvez o tema onde foi possível atestar em melhores condições a capacidade técnica do António). Jorge e Tiago pegaram no serrote e não o largaram durante todo o tema, e tivemos mais um solo brilhante. A bateria do Paulo foi uma maravilha rítmica que nos navegou abertamente por águas musicais nunca antes navegadas. A última imagem que ficou foram os guitarristas frente a frente, enquanto o Paulo fustigou o seu kit de forma exemplar, e o António juntou-se ao headbang já presente na sala. Durante 40 minutos todos viajaram no tempo através da música.
Quarteto do Old School Death Metal, puxando indubitavelmente para a cena sueca do estilo, ou não fosse o nome da banda ser sueco: tremolos que parecem um serrote que tanta distorção que os riffs carregam; blast beats provenientes das profundezas do inferno; uma voz rasgada e gutural em que as letras das canções vão para temas já experimentados por bandas como Entombed ou Dismember. E diga-se que, apesar de não existir baixo neste grupo, não é por isso que as músicas não são pesadas, até pelo contrário: o peso é máximo! Interagem bastante com a assistência e a sua qualidade técnica distinta só é superada pela sua tremenda boa disposição. Têm uma vontade insaciável de entreter o público pela arte da música, algo que conseguem fazê-lo sem grande esforço do início ao fim.
Uma prova de que, apesar do nome, o Death Metal está bem vivo. Uma prova atestada que as matinés mobilizam as pessoas e são bem-vindas. Uma forma diferente de passar um Domingo à tarde, bastante ansiada por muitos, e que tantos outros desejam que se repita. Foram quase 3 horas de música pesada; foram quase 3 horas de puro divertimento. Ainda assim, para todos os que se deslocaram ao RCA foi uma viagem demasiado rápida.
Texto por Marco Santos Candeias
Fotografia por Tânia Fidalgo
Agradecimentos: Xapada Fest