As portas abriram às 21 horas, e
nessa altura já se viam algumas caras suspeitas de irem marcar a sua presença
no espetáculo, ou não fosse o tema de conversa entre si: ‘bandas do metal underground
em Portugal’. A audiência foi aumentando com o passar do relógio, porém a esmagadora
maioria preferia aguardar ao fresco do exterior. Por volta das 21:35 horas
entrou um gato preto no interior da sala, e que por ali permaneceu durante algum
tempo – evocando assim a desconfiança dos maus agoiros, pois gato preto é sinal
de azar.
Os Reverent Tales subiram ao palco um pouco antes das 22 horas e arrancaram com a primeira música do seu álbum “Visceral”, a “Above Me”. Neste tema ficou logo bem vincada a fenomenal técnica da vocalista Raquel Nunes, que com o seu range vocal consegue passear entre canto gutural e clean vocals, sem qualquer esforço, parece que o faz de uma forma, assustadoramente, natural – assemelhando-se a Alissa White-Gluz. Apresentaram-se e saudaram a sala para prosseguirem para o segundo tema da noite, “Blackened Slumber”. Aqui fica evidente a capacidade estonteante do baixista António Freitas em criar um groove fantástico e preencher a melodia com uma precisão cirúrgica. A música deixou-nos com a sensação de que estávamos a ouvir algo inspirado em Opeth. No final da faixa ouviram-se fortes gritos ‘Raquel, Raquel’, demonstrando que existia manifestamente um forte carinho pela vocalista, da parte do público.
Raquel avisou que a seguir viria uma música nova, que apesar de não ser uma estreia ao vivo, fará certamente parte de um futuro álbum. “Your Future Died” que inicializou com uma intro, pelas teclas de Pedro Bendada, altamente atmosférica e que nos encaminha para algo quase futurístico – relembrando subtilmente bandas como Rush (a T-shirt do António vinha confirmar os gostos musicais da banda). A guitarra quando é a única na banda, tem sempre a tarefa hercúlea de criar melodia e manter o ritmo, todavia Nuno Pereira fez um trabalho exímio e invejável em conseguir o melhor dos dois mundos, mostrando que não é só o John Petrucci o senhor desta arte. O trabalho musical foi magnífico e viu-se uma distinta e forte sinergia entre a guitarra, baixo e teclado que em conjunto celebraram melodias ricas, não descurando o groove ou atmosfera, pelo contrário até os enalteceram. No final a vocalista avisou que se tratava de um dia especial para a banda e apresentou o novo baterista, o Paulo Adelino, e cumprimentou o antigo baterista, Carlos Matos, que se encontrava na sala a assistir. Em todas as canções sentimos uma bateria incansável, que facilmente se misturou na musicalidade dos restantes membros, mas que merece o seu destaque pela precisão de execução, que iluminou cada tema. E apesar do pouco tempo que tem com os restantes membros, parece ter pegado de estaca como aconteceu com Mike Mangini nos Dream Theater.
Seguiu-se “Enclosure” com um riff extraordinariamente
melódico e com um baixo que deambulou pelos graves e agudos, que nos eriçaram a alma
de emoção musical. Esta é talvez a faixa onde mais se ouviram cantos limpos da
parte da Raquel, e quando esta saltava para um canto mais gutural os restantes
artistas aceleravam o ritmo e colocaram maior agressividade no som, o que se coadunou perfeitamente, e voltou a desacelerar a eliminou-se a agressividade instrumental com
os cantos limpos – evidenciando um excecional conhecimento de música e elevá-lo
a patamares incomparáveis, algo que se espera sempre de uma banda de Prog e os
Reverent Tales não desiludiram. “The Era of Witches” entrou com uma intro no teclado que nos assombrou, complementada por uns harmónicos no baixo, que
prosseguiu na guitarra para um riff sujo e talvez o mais pesado da noite. Esta música apresentou-nos ritmos mais complexos à la metal progressivo e uma bateria
pelas baquetas do Paulo que assentaram que nem uma luva, culminando num solo de baixo
na zona dos frets mais altos, nas cordas Sol e Ré. O público puxou pela banda e
mostrou o seu agrado pela sonoridade produzida até ali.
Avançaram para “Visions of
Carnage”, onde Raquel andou de um lado para o outro no palco, enquanto cantou,
numa dança quase ritualística que fundiu concentração e emoção. António para este
tema utilizou uma palheta, abandonando a postura de Geddy Lee e assumindo a de
Justin Chancellor. Tivemos um momento sublime em que Nuno e António se colocaram frente a frente numa demonstração de perícia na arte instrumental e
evidenciando um sentimento de cumplicidade (que só se vê em bandas com uma
sinergia bem cimentada) Fecharam a sua atuação como fecham o seu álbum, com o tema “Creature”, no entanto, antes endereçaram um agradecimento especial: 1º
ao Hollywood Spot, local onde a banda se estreou no passado, e com outro nome;
2º aos Critical Hazard por os terem convidado; 3º ao público, segundo as
palavras de Raquel ‘que são o motor disto tudo, sem vocês nada disto seria
possível’. E que melhor forma de terminar, pois este tema unificou tudo o que é
a banda: excelente atmosfera inicial, a que o fumo (produzido na máquina) veio
só torna-la mais conspícua; uma guitarra que como um verdadeiro trapezista se
equilibra, na perfeição, entre ritmo e melodia; groove poderoso e dançável que
só um verdadeiro baixista consegue; um teclado que preenche e funde a melodia e
o groove; uma bateria que insufla tudo o que já era bom e torna-o melhor; uma técnica
vocal, brilhante, que harmoniza por completo todas as músicas.
O público mostrou que estava com a banda em todas as músicas, e que verteu um carinho especial pela vocalista, que foi ovacionada em todas as músicas. A banda mostrou o seu contentamento ao agradecer, constantemente, nas interações que foram tendo com a sala do Feijó. A guitarra do Nuno e o teclado do Pedro criaram uma espada melódica com ferro e fogo, que foi temperada pelo martelar incessante, ao fundo, da bateria do Paulo, enquanto isso, o Baixo do António ornamenta musicalmente desde o início, contudo é a voz de Raquel que define quão afiada será a lâmina sonora no final – é isto que é Reverent Tales. Ouve-se Rush, Opeth, Tool e Dream Theater nas entrelinhas das suas canções, pelo que os fãs do prog irão ficar cativados (se ainda não estiverem), com uma inspiração no Death Metal em particular no ramo melódico, entre outras. Não obstante, é preciso realçar que apesar das influências esta banda tem uma identidade sua.
Antes das 23 horas, os Critical Hazard apresentaram à Margem Sul o seu som. Cumprimentaram a sala e apresentaram-se: ‘Boa noite Feijó, somos os Critical Hazard e esta é a “The Nemesis March”’. Iriam tocar o seu álbum de 2022 do início ao fim. Nos primeiros instantes, percebeu-se logo: isto era death metal! Vocais guturais que nos remeteram para a onda mais old school do género; riffs de guitarra rasgados embora muito melódicos que nos enviaram para Gotemburgo; e um baixo que se tocava com 3 dedos na mão direita, tal era a velocidade do som; uma bateria que nos magnetizava com os estrondosos blast beats. Colaram-se ao segundo tema “Dracul”, e aqui viu-se que todos os artistas se manteram bastante concentrados na sua performance, todavia, preservaram nas suas faces aquele sorriso que nos contou, silenciosamente, que se estavam a divertir. Um riff extremamente melódico realçou-se infinitamente, e que só foi eclipsado pelo poderoso refrão “Dracul” que arrepiou todos, e que se ouviu por toda a Margem Sul, cantado pelo vocalista André Bento, e pelo baixista Joey Prazeres (que fez os back vocals em todas as músicas). Aproveitaram, no final do tema, para agradecer a todos os presentes e a todos os que apoiaram e divulgaram o evento.
“Madame Popova”, com inspiração na serial killer russa do século XIX, foi o terceiro tema da noite. A intro desta pediu headbanging e o André foi o primeiro a sucumbir a tal desígnio, junto do público, alguns seguiram a deixa. O trabalho das guitarras duplas de Alexandre Caldeira e Nuno Romero foi sublime, enquanto uma forjou melodiosamente e a outra deu-lhe corpo ritmicamente, uma proeza evidente graças ao companheirismo entre os artistas. Por outro lado, Joey vibrou em todos os temas, deixando claramente a todos saber que adorava o que fazia. A sua técnica frenética de mão direita fez lembrar Alex Webster ou Billy Sheehan. Este tema culminou com um solo de bateria de Guilherme Poeta que fez desejar aprender o instrumento, só para tentar replicar uma ínfima porção daquilo que se podia testemunhar – impecável.
‘Se ainda houver energia agora é o momento’, disse André antes de nos lançar para as labaredas musicais de “Flamethrower”, e ele tinha razão pois este foi mesmo um tema quente, e não foi por causa do nome. Um ritmo vertiginoso das duplas guitarras que foi fustigado pelos blast beats, criando o mote essencial para um solo de guitarra, típico e desejável no death metal, que hipnotizou o vocalista e baixista, conduzindo-os a um headbanging colossal. Antes da seguinte música agradeceram aos Reverent Tales e avisaram que iriam viajar até um passado distante com “Ancient Curse”. O tema arrepiou assim que começou, foi um riff sujo carregado de atmosfera assustadora que se propagou pelo solo de guitarra, que também permaneceu nesta temática – escalas cromáticas que arrepiaram a pele. Para a seguinte, André disse que do passado distante iam para um futuro pós-apocalíptico com “There’s no Hope”. Guilherme enviou blast beats furiosos que se misturaram no peso do riff das duplas guitarras de Alexandre e Nuno, que carregaram em si um sentimento de desespero e raiva, tudo isso foi martelado pelo baixo de Joey e André juntou tudo e deu-lhe pela voz e letras aquilo que a música pediu - criando em conjunto, musicalmente, a emoção requerida. Momento incrível, entre as duas guitarras, numa espécie de ping-pong musical, onde Alexandre começou um solo e passou o testemunho a Nuno que o agarrou e continuou o solo, e passou novamente a Alexandre, algo que lembrou a intro de “Dead Skin Mask” dos Slayer ao vivo. Foram ainda presenteados com um maravilhoso solo de baixo no meio de tanta musicalidade formidável. O público adorou e aplaudiu vivamente a banda, e estes aproveitaram esta deixa para mudar de afinações e arrancaram para um solo de guitarra. E como a melodia era o cartão de visita dos Critical Hazard o solo teve de estar bem apinhado dessa. Uma viagem infindável pelas melodias possíveis numa sonoridade que não se despegava nunca do death metal, tendo um baixo e bateria a servir de espinha dorsal, desta maravilha musical.
Tempo para apresentações muito bem recebidas pelo público. Foram para mais uma que começou com um riff que criou uma tensão de perseguição, acompanhada por uma bateria que os seguiu por todo o tema, ou não fosse esta música chamar-se “The Hunter”. A alternância no canto entre André e Joey neste tema foi magnífica, e mais uma vez a sinergia entre os membros foi encantadora. E mais um solo memorável, comprovando uma sensacional técnica de mão direita. Os metaleiros do Feijó gostaram disto, e elevaram os dedos indicador e mindinho bem no ar: em homenagem ao metal; numa saudação aos Critical Hazard. Passaram para aquele que foi o primeiro single da banda “Unleash the Thunder”, que com uma bateria que os atravessou como relâmpagos e solos eletrizantes que alternaram entre os guitarristas, e na voz tiveram uma dinâmica enérgica entre o baixista e vocalista. Avançaram para “Killing Core” que pareceu um hino ao death metal mais clássico, dando-lhe uma pitada de melodia, o que veio comprovar que esta era a especialidade da banda. Depois seguiu-se “Wild Beast” que foi uma estreia ao vivo. Com um riff pesado e sujo tipicamente associado ao estilo, contagiaram o público que se manifestou alegremente. No final, André avisou todos para que ficassem atentos às redes sociais, pois em breve irão surgir confirmações de novos concertos, e voltou a agradecer. Iriam para a última do seu álbum, Storming from the Abyss, “Hazard”. Com um riff épico e uma bateria poética; com um baixo lépido e um canto brutal; com solos majestosos e batidas perfurantes; com vocais alternados de uma beleza musical sem precedentes. Era este o hino da banda, indubitavelmente. Terminaram com ‘obrigado pessoal’, só que o ‘pessoal’ não os deixou sair do palco, e pediu incessantemente ‘só mais uma, só mais uma’. E após uma reposição muito célere no som da guitarra de Alexandre, a banda avançou para aquele que seria o último tema da noite, novamente “Ancient Curse”. André disse-nos ‘para ver se quebramos finalmente a maldição’. E desta vez pareceu que a canção saiu ainda melhor, os artistas estavam totalmente desinibidos e deram tudo ao público, que tanto suplicou por este tema. A banda mostrou que valeu a pena pedir por mais uma. Terminaram com ‘Critical Hazard, nós vamos tocar por aí, obrigado pessoal. Quase uma hora de puro death metal melódico, e podemos afirmar que a maldição foi de facto quebrada.
A banda viveu no death metal, tendo bem vincado o lado melodioso. Foram invadidos constantemente por solos de guitarra altamente harmoniosos e numa cumplicidade e sinergia, a destacar-se, entre Alexandre e Nuno. O baixo de Joey foi fascinante e encheu os temas com o groove poderoso e um peso exacerbado, e claro deu uma ajuda formidável nos backing vocals. Na bateria, o que mais dizer do que aquilo que André disse em palco sobre o Guilherme ‘o poeta da baqueta de aço’, era de uma técnica ímpar que susteve aquilo que foi criado pelos colegas, algo que só um verdadeiro baterista conseguia transmitir. E o vocalista André nasceu claramente para o death metal, a sua técnica singular de canto gutural arrepiou-nos de emoção, e apesar de se notar que faltava um pouco de experiência em palco, conseguiu transmitir uma boa dose de carisma e uma capacidade de ser um frontman a dar cartas no futuro. A banda mostrou uma sinergia tremenda entre todos os membros. E trouxeram consigo uma humildade invejável que demonstrou que queriam claramente crescer e aprender. O som bebeu inspiração no movimento sueco de Gotemburgo em bandas como At the Gates, Dark Tranquility ou até mesmo no início dos In Flames - sem clean vocals - nunca descorando o som da Flórida como Death, Morbid Angel ou Obituary. Contudo, tal como a banda anterior, também os Critical Hazard tiveram uma identidade única. Conseguiram criar o sentimento perfeito, através dos instrumentos, atendendo aos temas de cada uma das suas canções. Um projeto que começou durante a pandemia, e que esperávamos que continuasse muito para lá desse momento das nossas vidas.
Numa noite que nos aqueceu a alma, as bandas mostraram-se também bastante refrescantes, pois a sua musicalidade acabou por ser uma lufada de ar fresco, e todos gostaram de uma leve brisa fresca no meio de tanto calor. Agosto era um mês de férias e de praia, e talvez por isso tinham estado, apenas, cerca de 3 dezenas de pessoas na audiência, pois noutra data seguramente teríamos mais gente, ainda assim as bandas criaram um ambiente esplêndido. E ficou escrito em pedra, que gato preto no Feijó não era sinal de azar, mas sim sinal de música pesada e de muita sorte para quem a tocava, e em especial para quem a ouvia.
(ver mais fotografias do evento, aqui)