Nascidos em 2003, das sombras da música experimental, os Daughters afirmaram-se com o primeiro álbum “Canada Songs” (2003), um disco com a (curta) duração de onze minutos e uma efusiva amálgama entre os espectros do grindcore e mathrock. Apesar da natureza crua, “Canada Songs” estimulava um certo interesse mais tarde justificado pelos dois trabalhos seguintes: “Hell Songs” (2006) e “ Daughters” (2010), que os viu migrar do grindcore por lapidar para o polido noise rock que hoje os destaca. Oito anos se passaram até sair o quarto álbum de estúdio: “You Won’t Get What You Want” (2018). Subsiste, mais uma vez, a evidência da aptidão que este projeto de Rhode Island consegue empregar no que toca desafiar os confins do que é possível (nos conceitos de composição e timbre), edificando um fidedigno inferno sonoro capaz de se encarnar num verdadeiro indutor de ansiedade e tormento. Entre catárticas atmosferas aos estáticos tons que Alexis Marshall coloca nas narrativas deste espetáculo horrorífico.
Desde o primeiro minuto, em “City Song”, que estas personificações de desespero interno se introduzem com a voz de Marshall a assentar mesmo em frente a um drone granular: “This city is an empty glass,/ Words do nothing/No one sleeps…”. Sobre uma tarola que dispara na quarta repetição de cada compasso, uma nota longa e aguçada decai na diagonal evidenciando o carácter industrial de uma faixa que poderia perfeitamente estar presente no “The Downward Spiral” (1994).
Segue-se então “Long Road, No Turns”, com uma execução que faz justiça tanto ao conceito como ao título. O tema enceta com estrondo à medida que as guitarras expressam uma perturbante melodia sob uma parede que se assemelha a uma amplificação de qualquer inseto díptero. Este caótico cenário fica completo com a adição das “falas” de Marshall que, no interior desta atmosfera, lentamente dita as primeiras palavras: “ Everybody climbs up high then falls real far/A little is all it takes”. Num enrolar em crescendo, o tema termina com diruptivos acordes de guitarra que saem de cena demoradamente.
“Satan in the Wait” é uma das mais intensas faixas do disco, tanto no termo lírico como melódico. Dissonantes sirenes abrem o tema em conformidade com a bateria, segurando por um inquietante período de tempo até que a boca de cena é entregue a Marshall, que traça uma macabra descrição, “head like a matchstick/ Face like he was sucking concrete through a straw/ Some faces not even a mother can love.”, sendo as atenções entretanto desviadas para uma deliciosa e pitoresca melodia que assenta por um tempo. Conclui numa hipnótica atmosfera, onde todos estes elementos dançam entre si, no culminar de um cenário kafkiano, onde Tom Waits e Lovecraft discutem uma narrativa poética numa sala escura e fumarenta, ao som de uma banda sonora proporcionada por John Carpenter.
“The Flammable Man”, por sua vez, instala o caos e a confusão desde o seu início. “I don't lie” é a primeira proclamação, gritada repetidamente sob uma parede confusa de ruído caótico. À exceção de um momento de respiração, o tema emerge de um inferno ansioso e desesperado até colapsar (após uns curtos segundos do que parece ser uma pulsação acelerada) numa combustão desesperante, onde Marshall adiciona outro memorável mantra : “Is something burning in here or is it me?”.
“The Lords Song” e “The Reason They Hate Me” demonstram o flanco mais no-wave e industrial do disco, e marcam os momentos mais calmos e organizados, apesar de identicamente possuírem a mesma característica de catalisadores de aflição. Também em “Less Sex”; que possui tempos mais lentos e um ambiente mais eletronic disco, unidos com uma narrativa onde um encontro sexual leva à presença de um monstro na cama do narrador e consome a mente do mesmo; é destapada uma outra e aliviante atmosfera.
A terminar o álbum apresentam-se “Ocean Song” e “Guest House”. Este último provê o movimento final que o disco merece, consistindo numa derradeira parede de ruído, acompanhado com sintetizadores orquestrais (mais evidenciados quando as cordas se desintegram progressivamente), enquanto Alexis Marshall grita em agonia: “Let me In”. Todos os elementos se unem em crescendo e eventualmente o caos instala-se em toda a atmosfera, terminando num bonito apogeu onde apenas os sintetizadores permanecem.
“You Won’t Get What You Want” é uma obra com oito anos de intervalo desde o último lançamento, de um grupo partido e estimulado pela vontade de se reinventar a cada trabalho. Encontra-se repleto de momentos aterradores, fermentados com metáforas que gritam por interpretação, capazes de nos proporcionar dos piores e mais desagradáveis momentos de conflito interno, nos confins dos nossos tormentos e agonias, sobre diferentes ritmos, sabores e intensidades. Não se trata apenas de um disco de noise rock, mas quase de uma cirurgia psiquiátrica sonora executada sem anestesia ou analgésicos. É a representação artística dos nossos medos e sofrimentos e (citando Anthony Fantano) é a conclusão cliché de que os verdadeiros monstros habitam dentro de nós. “You Won’t Get What You Want” destapa-se não como mais um disco de Daughters, mas também num importante marco na história do género.
Nota: 9.5/10
Nota: 9.5/10
Review por José Vieira