A segunda edição do Morbid Spring Fest aconteceu no Pátio do Sol em Barcarena, no passado dia 14 de Abril. Um sítio aconchegante e verdejante, longe do que poderíamos considerar um cenário idílico para receber aquela quantidade, variedade e agressividade de bandas. Começou por ser caricato e embora tímidos a início, lá nos fomos sentindo cada vez mais confortáveis e adequados ao espaço. A disparidade entre o som e o cenário foi com certeza uma das coisas que ficou na memória dos presentes. Por ser feriado e talvez por estarmos já em fim-de-semana de Páscoa, o evento contou com uma afluência reduzida. Ainda assim o festival foi tudo o que deveria ter sido e sextas-feiras santas assim é que valem a pena.
Já com uma atitude mais madura, chegavam então de Sintra os Burned Blood e mantiveram entre mãos a difícil tarefa de puxar por um público que, para além de reduzido, pouco parecia estar realmente a aproveitar os concertos. Ainda com baterista e guitarrista recentes, estes meninos mostraram que mesmo com poucos se pode fazer a festa ao som de um deathcore bem esgalhado. Não deixou de ser curioso ver o baixista Cláudio Melo a tocar só de meias e a sentir-se suficientemente à vontade para vir tocar para o meio do público. São já nossos conhecidos de outras paragens e só podemos dizer que a banda se tem demonstrado mais segura a cada actuação. Contámos com temas dos seus dois EPs, entre eles “Evolution of Self” e “Killing Spree”, e mais uma vez contaram com um convidado para a interpretação do tema “The Method”, desta vez protagonizando o dueto com Bruno Evangelista, vocalista dos Mass Disorder.
A actuação dos Disthrone, que
chegavam a Barcarena directos da margem sul, prometeu desde que se ouviu o soundcheck da guitarra com “Bate forte o
tambor, eu quero é tic, tic, tic, tic, tac” da Banda Carrapicho. Não se armem
em esquisitos, que nós sabemos que vocês também conhecem a música e isto
demonstra-nos bem que o nosso underground é sobretudo sobre bom humor e
companheirismo. Este será certamente o momento ideal para vos introduzir a
vocalista Carina Domingues, que não deixou ninguém indiferente com o seu registo
vocal abrasivo a acompanhar extraordinariamente bem o puro thrash/black/crust
punk à moda antiga que este quarteto nos trouxe. Desde conseguirmos vê-la
estrangulada no cabo do microfone até a vermos intimidar toda a gente na sala
com um machado na mão, houve direito a um pouco de tudo. A bateria de P. Tosher
marcou o passo e se não fosse estar tão pouca gente naquele espaço, era tareia
garantida. Ainda mandaram umas bocas tentar agitar o público, sem deixar de
mencionar o futebol, mas a verdade é que a mensagem anti-sistema e uma atitude
muito DIY foram suficientes e falaram por si só. Tocaram “Mistress of Evil” e
“Anti-system” do demo com o mesmo nome, mas também “War Criminals” e “Álcool e
Caos” do seu mais recente EP “Retaliação”, lançado o ano passado… e eu se
pudesse via mais uma hora de concerto só deles.
Foi em conversa com os elementos
da banda nortenha que ficámos agradavelmente surpreendidos por saber que este projecto
teve início em Novembro do ano passado. Os Gaerea chegaram do norte, tal como a
sua música nos chegou fria, crua, perdida entre a luz e o vazio. Assinaram por
uma editora italiana e talvez por isso tenham mais reconhecimento no exterior
do que por terras lusitanas. Aos amantes de black
metal atmosférico, muito na onda de Mgla, aconselha-se vivamente, e mesmo
tendo em conta o boom que este género sofreu, este é um dos projectos nacionais
que certamente merece toda a nossa atenção. Depois dos machados, vemos
montar-se um suporte de microfone feito com troncos, que não foi de todo a
única coisa que se destacou desta actuação. A ausência de luz natural e de
interacção com o público, um vocalista entregue à escuridão, os riffs mais melódicos da guitarra e uma
bateria dissonante, a tinta nos braços, quantidade de fumo e as máscaras inscritas
que cada um dos membros envergava, foram todos elementos fundamentais para
tornar aquela actuação ainda mais intensa. Ainda que seja uma opinião
ligeiramente tendenciosa (enquanto seguidora de black metal), é exactamente esta a performance que se espera de uma
banda deste estilo.
Quanto a nós, o tempo para jantar
foi pouco, e já com um horário ligeiramente apertado, foi complicado dedicar a
cada banda o tempo merecido. Nada surpreendente num cartaz tão ecléctico e que
inclui tantas bandas a tocar no mesmo dia, mas nós ressentimo-nos na mesma.
A nortada continuou e finalmente
tínhamos Redemptus à nossa porta. Trouxeram-nos o seu álbum “We All Die The
Same” lançado em 2015 e é impossível que tenham deixado alguém indiferente,
ainda que houvesse gente mais interessada no jogo que passava na televisão ou
nas cervejas que que se bebiam na esplanada. Um projecto que nasceu de
partilhas entre dois amigos e se torna numa verdadeira experiência a cada
audição, ao vivo ou não. Houve trovoada, as samples de voz fizeram-se à nossa
frente e ouvimos temas como “Redemption” e “Busted, Disgusted and not to be
Trusted.” A guitarra, a bateria e o baixo unem-se numa profecia caótica e o headbanging do público acompanha.
Confesso que preferia vê-los num espaço menos iluminado e menos arrumadinho,
mas em pouco o local afectou a qualidade do que este trio nos demonstrou a
nível técnico, com o seu doomy-post-sludge
metal arrastado. Em passagens dedicadas à decadência da condição humana e o
estado da sociedade actual, deixaram-nos na memória frases como: “Society makes us believe we need to live
with an eighteen years old body all our lives, but I live just fine with who I
am.” O vocalista P.R. é também
conhecido pelos seus projectos paralelos, como é o caso de Besta e de Verdun, e as
suas performances continuam a encontrar uma harmonia perfeita entre o
desconfortável e o admirável. A banda revelou já este ano estar neste momento a
gravar o seu segundo álbum e nós mal podemos esperar.
Os Grimlet vieram direitinhos de
Coimbra para apresentar o seu acabadinho de estrear Theia: Aesthetics of Lie”
perto da capital, depois de terem feito a apresentação oficial do álbum no
Stairway Club. Esta banda conta já com 18 anos de carreira e apenas com três
álbuns lançados, são provavelmente a aposta mais convincente a nível do death metal progressivo nacional. Mesmo
contando com (menos de) meia casa em Barcarena, traziam com eles a sabedoria e
à vontade inerentes a uma banda com este tempo de carreira, mas também alguns
elementos surpresa. O guitarrista Flávio e o baterista Filipe são membros
relativamente recentes no grupo e embora a banda apresente ainda algumas
arestas por limar, a técnica, boa vontade e boa-disposição são coisas que não
lhes faltam. O vocalista nunca baixou os braços e tentou sempre puxar por uma
plateia que já estava menos do que morna, gabo-lhe o esforço. Conseguiram então
falar também ao coração dos aficionados do death
metal mais oldschool,
apresentando uma setlist onde não
faltaram temas como “Knee-Deep in the Dead” e “Chaoscope”, sem nunca descurarem
os temas do seu mais recente trabalho.
Depois de tudo isto, foi um
prazer ver as nossas preces ouvidas, talvez por estarmos em semana santa. Há
pouco tempo partilhámos a falta que sentíamos de um concerto de death metal demolidor, como só os Bleeding
Display são capazes de nos proporcionar. Importante destacá-los desde já como
tendo sido a única banda com direito a mosh
pit (ainda que apenas com três participantes). Um concerto curto e grosso,
sem grande tempo para interacções além de alguns agradecimentos à organização,
aos presentes e aos que continuavam na esplanada a virar cervejas. Sérgio
Afonso incorporou mais uma vez aquele pugilista do mal a que já nos habituámos,
sempre muito bem acompanhado pelos seus companheiros na componente
instrumental. Pelos atrasos nas actuações, recebemos uma verdadeira visita de
médico, pecando somente pela ausência de sangue. Entre faixas como “Refinement
of Evil”, “Beyond Flesh” e “Killing Spree”, houve ainda tempo para dedicar “Remains
to be Seen” a Nocturnus Horrendus, com a especial participação de Carina
Domingues (Disthrone) e de dois machados em nada estranhos aos presentes,
proporcionando certamente um dos melhores momentos do festival.
Numa onda consideravelmente mais
calma, subiram ao palco A Tree Of Signs. Um projecto que começou em 2012 e
sofreu ao longo do percurso algumas alterações na formação original,
apresentou-nos no Pátio do Sol a sua mais recente parelha de elementos, P.
Tosher na bateria e Sofia Silva na voz, nossa conhecida de Neoplasmah. Num
ambiente à média luz apresentaram-nos temas do seu primeiro EP “Salt” e da sua
mais recente compilação “The Rituals”, mas também dois novos temas “The Fall of
the Neophyte” e “Initiation of Light”, possivelmente a integrarem o álbum
que a banda se prepara para lançar este ano. Transportaram-nos para longe, mas
para um sítio bonito, sem dúvida. A bateria de Tosher e o baixo de Nocturnus
são um verdadeiro duo dinâmico na entrega deste doom metal atafulhado de influências psicadélicas, combinando de
forma peculiar algumas influências góticas e folk que conseguimos captar
através do teclado de Letícia e da voz de Sofia, perdidas numa aura de natureza
e misticismo. As influências são muitas, desde Sabbath a Blood Ceremony, e a conjugação das vozes de Sofia e
Nocturnus nas passagens de algumas músicas, em conjunto com tudo o que foi
mencionado anteriormente, também marcam a diferença na performance da banda e ao mesmo tempo relembram-nos o talento de cada um dos músicos que integram este
projecto.
Os Martelo Negro vieram encerrar esta
noite de celebração do underground
nacional a chave de ouro, com o seu thrash,
death e black metal cantado em português. Mesmo com o Pátio do Sol a contar
apenas com a presença dos mais resistentes, seguiram-se cerca de 40 minutos de
porradinha nas orelhas à antiga. Donos de uma energia inexplicável conseguiram
prender a atenção dos poucos presentes e eu posso garantir-vos que ficámos mais
uma vez com o nosso bichinho de mosh
a roer-se por não se poder libertar devidamente. Dos dois álbuns já lançados
pela banda ouvimos “Mutilação Ritual”, “Servos da Cúspide”, “Liturgia de
Excrementos” e “Equinócio Espectral.” Brindaram-nos com um novo tema, “Rameira Necromante”, e ouviram-se rumores de um novo álbum para 2018. Foi (finalmente)
a única banda a destacar a presença de uma pequena figura religiosa no
background do palco, reforçando uma atitude bem-disposta e “fuck the system.” Sendo a única banda com direito a encore
(e bem!), terminaram a actuação ao som de “Hierofante em Chamas” com a
participação de Carina Domingues, que subia a palco pela terceira vez nessa
noite. Nós agradecemos, porque não é todos os dias que vemos uma presença tão
forte em palco e tão humilde fora dele, quando chega a altura de trocarmos uma
ou duas palavras com elas.
Existem mais do que mil motivos
para explorar o underground português ainda mais, mas continuamos a deparar-nos
com uma realidade em que muitos eventos ainda têm pouca adesão do público
dedicado às sonoridades mais pesadas. Longe de compreender o porquê disto
acontecer, deixo-vos como sempre a mensagem de que vocês é que não sabem o que
estão a perder. Queremos deixar um agradecimento à Stone The Crow - Productions
por nos ter recebido e à Loudness por nos disponibilizar algumas fotografias, e só esperamos que
mais gente continue a ter a mesma coragem que a Rita e o Marco, para fazer
avançar projectos e eventos como estes.
Texto por Andreia Teixeira
Fotos por Andreia Vidal
Agradecimentos: Stone The Crow - Productions & Loudness (cedência de fotografias)
Texto por Andreia Teixeira
Fotos por Andreia Vidal
Agradecimentos: Stone The Crow - Productions & Loudness (cedência de fotografias)