Poucas vezes nos deparamos com visionários que pegam nas ideias pré-concebidas daquilo que é, ou não, “permitido” fazer e as viram do avesso, criando algo verdadeiramente original. Como a história nos conta, todos os avanços nas mais diversas áreas atraem tanto louvor como crítica e os Liturgy são uma banda perita em provocar reacções polarizadas da parte de quem entra em contacto com os seus trabalhos. Pelo som francamente original que têm vindo a praticar na sua ainda curta carreira, mas também pelas ideias veiculadas pelo líder Hunter Hunt Hendrix, mais concretamente o seu manifesto sobre o “black metal transcendental”, muitos têm interpretado a banda como pretensiosa e “hipster”.
É certo que as ideias de Hendrix são, no mínimo, palco para um bom número de argumentações sobre o tema mas será que um conjunto de pensamentos tão forte e disruptivo tem o acompanhamento necessário por parte da música? A resposta é clara: Sim. O som dos Liturgy é desafiante, controverso e inegavelmente diferente. Dada esta rara conjugação de características é fácil compreender que a banda não agrada a todos, principalmente aos fãs mais tradicionais de um subgénero musical com tanta história como o black metal. Toda esta contextualização prévia é necessária para a compreensão do estilo que encontramos no novo álbum do colectivo, “The Ark Work”. Visando uma progressão após o fortíssimo “Aesthethica”, os Liturgy renovaram a sua abordagem, optando por excluir os gritos agudos e reduzir o caos sonoro que caracterizou a maioria do trabalho anterior. No seu lugar estão uma série de novas adições, a par de características anteriormente presentes mas que foram acentuadas, tal como o uso de instrumentos midi, os beats electrónicos, coros dissonantes e, em certos pontos do disco, rap. Tentando a difícil missão de categorizar aquilo que ouvimos neste álbum podemos falar numa espécie de mistura entre black metal, math rock, electrónica, glitch e hip-hop alternativo. A grandiosa introdução, “Fanfare”, transporta-nos para uma espécie de passado futurista, no qual o ouvinte consegue facilmente imaginar-se de pé no centro de um antigo coliseu romano mas a escutar música saída de um computador, tal é a presença do som midi. Segue-se “Follow”, com os primeiros blast beats e instrumentação de guitarras e baixo, mas que o mantém os sons electrónicos na totalidade da faixa. A voz de Hunter soa algo bizarra, assim como em grande parte do disco, mas é claramente intencional, procurando conferir uma atmosfera algo hipnótica à já acentuada repetição rítmica. De seguida é a vez de “Kel Valhaal”, um dos pontos altos do álbum. O tema começa com o padrão rítmico presente na faixa de abertura, mas com uns certos glitches propositados, que nos fazem instintivamente confirmar se as colunas ou os headphones estão a funcionar correctamente. A meio da faixa ouvimos a primeira instância de rap que, talvez estranhamente faz todo o sentido, na sua forma e maneira como é executada. Seguem-se “Follow II”, a orelhuda e quase techno “Quetzalcoatl” e “Father Vorizen”, que é claramente a faixa com o som mais tradicional de todo o álbum, antes do momento de descompressão trazido pelo interlúdio “Haelegen”. Na parte final do álbum surge “Reign Array”, um tema épico de 11 minutos com uma variedade de dinâmicas impressionante mas que nunca quebra o som das grandiosas orquestrações midi até a entrada de “Vitriol”, talvez a faixa mais estranha de todo o álbum, com os seus coros e linhas vocais cantadas num rap desconcertante e letras particularmente mórbidas, antes de “Total War” finalizar o espectáculo.
Como aspectos negativos há que referir o facto de a mistura estar desfasada em alguns pontos, produzindo clipagem de áudio, o que causa alguma irritação auditiva. Os glitches, ainda que intencionais, não adicionam muito e levam ao exagero aquela onda digital que, de resto, até está bastante bem conseguida. Ainda assim, estamos na presença de um álbum importantíssimo e que deixa ideias muito animadoras para o futuro desta banda americana. Os Liturgy são um caso sério e se no lançamento seguinte conseguirem melhorar os aspectos que não saíram bem neste, podemos estar na iminência de assistir a uma revolução no mundo da música extrema.
Nota: 8.5/10
Review por Daniel Lauriano