Vinte anos de carreira, uma mítica parede de amplificadores carinhosamente apelidada de “wall of doom” e uma Winnebago que tanto serve de veículo de tours como de casa são alguns dos aspectos que fazem dos Jucifer uma banda única. A Metal Imperium aproveitou o lançamento de District of Dystopia, nono álbum e o mais agressivo até à data, para falar com Gazelle Amber Valentine, guitarrista e vocalista do duo.
M.I – O vosso EP “Nadir” [gravado em 1994 mas apenas lançado oficialmente em 2011] assemelha-se mais aos concertos de Jucifer do que o vosso primeiro álbum, “Calling All Cars on the Vegas Strip”. Podem dizer-nos algo sobre esses lançamentos?
“Nadir” foi uma das nossas gravações de quatro pistas durante os anos iniciais da banda. Essas gravações partiam de ideias surgidas em ensaios e distribuíamos cópias em cassete aos nossos (poucos) fãs e a agentes e promotores. Há alguns anos redescobrimos esse EP e achámos que soava bastante bem, por isso decidimos relançá-lo já que a maior parte dos nossos fãs actuais não o conhecia. Por volta da mesma altura fizemos algumas gravações no primeiro estúdio do Andy Baker, o engenheiro de som que trabalhou em todos os nossos álbuns até ao “Throned in Blood”, de 2010. No entanto, só começámos a trabalhar a sério no álbum a partir de 1995. “Calling All Cars on the Vegas Strip” foi o nosso primeiro álbum gravado inteiramente a partir de um conceito-base. É uma banda sonora para um filme que o Edgar [Livengood, baterista] imaginou. Descreveu-mo de uma forma tão vívida que senti que o tinha visto. É uma história passada nos anos 80 sobre uma rapariga que sonha com uma carreira de sucesso, tenta tornar-se actriz, mas tudo corre mal e acaba por destruir a sua vida. Pedimos a uma bartender local para dar vida à personagem principal na capa do álbum, e fotografámos o desfecho do filme. Falámos bastante sobre o álbum enquanto o gravávamos – o facto de estarmos a fazer algo diferente e que não soava de todo ao que fazíamos nos concertos. Sentimo-nos um bocado angustiados porque sabíamos que era algo que podia prejudicar a nossa carreira. Mas decidimos que o mais importante era criar o que queríamos criar. Decidimos que aceitaríamos quaisquer consequências negativas a nível da nossa popularidade. E, para nós, foi a escolha certa. Não nos arrependemos.
M.I – Em 2008 gravaram um álbum inspirado na Revolução Francesa e em 2013 escolheram outro tema histórico, a Batalha de Estalinegrado. Tinham intenções de os gravar como álbuns conceptuais ou esses tópicos eram meramente ideias que acabaram por ir crescendo?
O nosso álbum de 2008, “L’Autrichienne”, foi repetidamente descrito como “o nosso primeiro álbum conceptual”, mas foi simplesmente a primeira vez que tornámos explícito o tema e incluímos notas no CD a descrever as histórias que inspiraram cada música. Na verdade, todos os nossos álbuns de estúdio são álbuns conceptuais. Com os primeiros lançamentos achámos que seria interessante deixar o conceito estar lá e não fazer grande alarido sobre isso. Achámos que havia pistas suficientes para os ouvintes. Mas apercebemo-nos de que estávamos praticamente a criar testes de Rorschach: ninguém para além de nós iria necessariamente compreender os padrões. Provou-se frustrante porque havia conceitos profundos, fomos meticulosos, mas as pessoas não se aperceberam. Concordámos que foi um erro sermos tão subtis. Por isso, a partir de 2008, começámos a acompanhar cada álbum com liner notes detalhadas! Alguns conceitos como o da Revolução Francesa e o de compor um álbum com base na história da Rússia eram ideias que sabíamos que iríamos usar mais tarde ou mais cedo; são tópicos que nos interessam desde a infância. Outros, como o de “If Thine Enemy Hunger”, surgiram na estrada. Esse álbum, sobre as condições dos mineiros na América dos séculos XIX e XX, começou a ganhar forma depois de visitarmos um monumento de homenagem às vítimas do Massacre de Ludlow. Mas, de forma geral, os álbuns crescem sempre depois de começarmos a gravar. O compromisso de terminar um álbum dá-nos desculpa para mergulhar verdadeiramente no tópico e isso resulta sempre em mais uma ou duas músicas.
M.I – Acabaram de lançar “District of Dystopia”, possivelmente o vosso álbum mais político até à data. Houve algum evento recente que vos tenha levado a essa decisão?
Sempre fomos políticos no sentido de nos preocuparmos com assuntos importantes e de problematizarmos a sociedade – isso sempre foi uma parte da nossa música, embora não de uma forma tão óbvia até agora. Tal como com os próprios conceitos, acho que nos fomos tornando gradualmente mais óbvios com as nossas mensagens. Quando decidimos gravar um álbum sobre Washington D.C. sabíamos que teria de ser político. O Edgar encorajou-me a torná-lo extremamente político e historicamente preciso. Isso significou muito para mim, contar a história de pessoas que foram propositadamente apagadas da nossa história… pessoas que foram traídas, oprimidas, discriminadas pela Lei. Nunca quisemos ser uma “banda política”, ou qualquer tipo específico de banda, para dizer a verdade. Sempre quisemos a liberdade de seguir a nossa musa e fazer o que nos move. Mas o que nos move, habitualmente, são histórias traumáticas. De certo modo, ilustrá-las permite-nos exorcizá-las das nossas almas, e esperamos que isso inspire outras pessoas e que as leve a importar-se. As histórias que contamos nas nossas músicas são histórias que achamos importantes: temos de superar as manobras de propaganda e de ver os acontecimentos como mais do que meras datas. Temos de ver a humanidade presente nelas e o fio de homogeneidade que liga o passado e o presente.
Wow, isso é uma questão enorme! Espectacular! Acho que… que nos faz ver que todas as barreiras entre povos são ilusórias. Que os materialismos são secundários e que a própria sobrevivência é gratificante. Que, apesar de todas as coisas horríveis no mundo, os desconhecidos são frequentemente bondosos. Quando passas muito tempo a viajar deixas de acreditar tanto em propagandas. Visitas tantos sítios e conheces tantas pessoas diferentes, mas apesar de tudo há muitas coisas em comum. Os governos e as religiões e as filosofias criam divisões onde elas não precisam de existir.
M.I – O álbum do ano passado, “за волгой для нас земли нет”, foi o primeiro composto inteiramente por material novo. Como foi a composição do “District of Dystopia”?
No “District of Dystopia” aproveitámos ideias antigas no sentido de recorrer a sonoridades grindcore e a temas políticos, mas as canções foram todas escritas imediatamente antes de começarmos as gravações. Foi um esforço concentrado e acabou por ser extremamente agradável fazer as coisas desta maneira. Menos de seis meses desde o surgimento da ideia até ao lançamento do álbum é algo de realmente incrível para nós. Não seria possível caso não tivéssemos tratado de tudo nós mesmos, porque assim pudemos criar a nossa própria calendarização.
M.I – Como é que uma banda que está sempre em tour grava álbuns, e em que medida é que este último foi diferente?
No passado tínhamos que pré-agendar tempo de estúdio e eram os nossos agentes a tratar disso. Quando ainda trabalhávamos com o Andy Baker tínhamos de planear a tour do ano inteiro com base no período em que precisaríamos de estar em Georgia para gravarmos. O Andy foi viver para Taiwan e tivemos de procurar outros estúdios, mas tínhamos na mesma de planear tudo antecipadamente. Com o “за волгой для нас земли нет” tivemos de ir gravando em diferentes sessões e custava-nos sempre esperar. Gravámos quase tudo em 2011 mas só o pudemos completar em 2013. Por isso, apesar de tecnicamente o álbum ter acabado de sair, respondia a um impulso criativo que tivemos há quase quatro anos, e já nos sentíamos prontos para gravar o seguinte. Decidimos gravar agora o “District of Dystopia” em parte porque era o conceito perfeito para um álbum do-it-yourself, que seria muito mais fácil de completar não estando dependente dos compromissos de outras pessoas. Arranjámos algum tempo livre no meio da tour e gravámos tudo sozinhos usando um gravador de quatro pistas dentro da autocaravana Winnebago onde vivemos. Foi tão eficiente quanto gratificante.
M.I – O que é que vos levou a andar permanentemente em tour?
Nós trabalhávamos em restaurantes que nos permitiam regressar depois de tours extensas, mas quando regressávamos ficávamos com os piores turnos. Para além disso, sentíamo-nos preguiçosos por não estarmos a fazer aquilo que fazemos melhor. A única forma de continuar com esse tipo de tours era passar a viver na estrada. Viver num veículo. Não resultaria para muita gente, mas para nós, como uma banda, um casal e completamente dedicados a isto… faz sentido.
M.I – Se acabassem por escolher um sítio para viver, teriam alguma cidade ou país de eleição?
É difícil dizer. Adoramos ser nómadas e temos imensos sítios favoritos. Principalmente os sítios com paisagens majestosas – montanhas, mares, desertos. Se o dinheiro e a emigração não fossem barreiras? Teríamos casas no Wyoming, na Califórnia, Arizona, Rússia, Portugal, Croácia, Suíça, Itália, França, Eslovénia… acho que a lista seria demasiado grande! (Risos)
M.I – Os Jucifer não são o vosso único output artístico. O Edgar é fotógrafo e ambos pretendiam lançar livros. Estão a trabalhar em alguma coisa actualmente?
O Edgar tem imensas ideias para filmes e eu pinto esporadicamente e gosto de fazer jóias. Por agora, os Jucifer ocupam tanto do nosso tempo que não podemos trabalhar extensivamente em mais nada. Por isso temos imensos projectos inacabados e outros totalmente terminados na nossa mente, mas que ainda nem se começaram a materializar. Quando alguém inventar um meio de gravação que transmita directamente ideias no cérebro para meios físicos (CDs, livros, o que quer que seja), aí seremos prolíficos.
M.I – Apesar da dedicação a Jucifer, lançaste recentemente um álbum a solo, e o título (“Devil’s Tower I”) sugere uma sequela.
Neste momento, Devil’s Tower é um side project através do qual vamos gravar material que não funcionaria em Jucifer. Por isso tens razão, o Devil’s Tower I é o primeiro de uma série. É um álbum com uma sonoridade country, folk, mas sombria. Pretendemos lançar um “Devil Tower’s II” em 2015. Também gostávamos de fazer uma tour enquanto Devil’s Tower, que pudesse também incorporar algumas das músicas mais suaves de Jucifer, ou aquelas que, por causa da instrumentação, não são adequadas para os concertos de Jucifer.
M.I – Para terminar, a vossa música já foi descrita como blackened doom, death drone… descobriram mais algum termo orelhudo para designar os Jucifer?
Um que achei engraçado foi “sludgethrashdoomgrind”… cobre a maior parte dos tópicos. Mas também temos influências de death e black metal, por isso se calhar somos sludgethrashdoomgrinddeathblack? (Risos) O que quer que seja, estamos a dar tudo o que temos e adoramos o que tocamos.
Entrevista por Daniel Sampaio